Apresentação
Resumo
Nancy Cardoso / Sandra Nancy Mansilla / Larry Madrigal Rajo Tradução: José Ademar Kaefer Introdução Cuando mis palabras eran tierra fui amigo de las espigas. Cuando mis palabras eran ira fui amigo de las cadenas. Cuando mis palabras eran piedra fui amigo de los arroyos. Cuando mis palabras eran revolución fui amigo de los terremotos. -Mahmoud Darwish-[1][2] A palavra Palestina é terra, é ira, é terremoto, é pedra que desassossega os senhores da guerra, do colonialismo imperialista e do genocídio da ocupação militar de Israel em Gaza. Quando a teologia sionista faz uma leitura supremacista da Bíblia e tenta calar a voz que clama por justiça, paz e soberania… as pedras clamam (Lucas 19, 40). Este é um número especial da RIBLA, motivado pela urgência de se fornecer conteúdos críticos de nosso trabalho com a Bíblia na América Latina. Com este esforço queremos não só denunciar a crise humanitária e civilizacional implícita no que está passando na Faixa de Gaza com a guerra entre o governo de Israel e o Hamás, mas, principalmente, oferecer ferramentas para expor o perigo de se usar a Bíblia como arma de guerra. Levando em conta as nuances sociopolíticas, culturais e históricas, nós focamos nas narrativas bíblicas, que, com maior frequência, são aludidas para fomentar posições fundamentalistas, sionistas, colonialistas e racistas, que por sua vez são a base para perpetrar genocídios e crimes em nome de Deus e de sua vontade, tanto nos textos quanto na realidade. Essa guerra de ocupação e genocídio nos desafia como estudiosos bíblicos, não só porque é o país da Bíblia, mas principalmente porque tanto lá quanto em nossa região os aparatos econômicos, políticos e militares se mobilizam violentamente em discursos de conteúdo religioso, em forma de cruzadas, para chegar ao poder e dispor de territórios, bens e povos. Os órgãos de mediação de conflitos, colapsados, são cada vez menos e mais débeis. Como pessoas de fé e como cidadãos, num mundo globalizado pela tecnologia e pelas comunicações, todos e todas somos chamados a levantar uma voz urgente por um cessar-fogo, já! Sobre as contribuições deste número A jornalista e ativista Maria Landi faz uma apresentação histórica e cronológica del primer genocidio del siglo XXI televisado en tiempo real inseparável do colonialismo e racismo da ocupação israelense na Palestina. Landi apresenta os dados da brutalidade dos 6 meses de guerra em Gaza, a assimetria das relações de poder e a impunidade de Israel garantida pelo apoyo de las potencias occidentales lideradas por EE.UU. e a incapacidade da comunidade internacional em dar um basta na escalada brutal y sangrienta incapaz de impor un embargo militar y sanciones económicas, diplomáticas y políticas a Israel. Landi faz um chamado a escuchar la palabra palestina em especial a teologia da libertação palestina desconstruindo a narrativa do sionismo cristão e, a partir da teologia latino-americana, leer la Biblia desde las víctimas de la injusticia. Nancy Cardoso faz a memória da Nakba, a catástrofe imposta aos palestinos em 75 anos de ocupação ilegal da Palestina por Israel e levada ao extremo hoje nas manobras sionistas de limpeza étnica em nome de uma guerra justa. O texto apresenta o uso da Bíblia nas justificativas da guerra contra a população de Gaza, tanto pelo governo de Israel quanto por setores fundamentalistas no Brasil. O sionismo é uma ameaça não só para a Palestina, mas também uma “ideia-força” que opera na América Latina - suas periferias e seus conflitos o que coloca perguntas incômodas sobre religião popular, cultura de massas, sujeito popular e pânico moral… Neste sentido, o enfrentamento do sionismo é urgente e necessário na leitura bíblica latino-americana. Sandra Nancy Mansilla e Martín Federico Giambroni retomam a história e os compromissos de RIBLA, suas bases firmes en una hermenéutica bíblica de liberación desde las comunidades de lectura en América Latina y el Caribe. Fazendo memória da reflexão de Jorge Pixley, fazem uma advertência sobre os perigos del mensaje bíblico para proyectos voraces de sometimiento y opresión, como por exemplo, la hermenéutica política de Milei na Argentina e sua autopercepción cuasi mesiánica. Mansilla & Giambroni nos lembram que Palestina no está lejana de América Latina e que a causa palestina está presente em las luchas por la dignificación de nuestros pueblos desde organizaciones populares e a importância de talleres de lectura socio política de la Biblia criando puentes de la liberación del texto bíblico no diálogo Palestina -América Latina. Luiz Dietrich usa a expressão grilagem – a manipulação de um documento artificialmente envelhecido para reivindicar a propriedade da terra e expulsar dali seus moradores antigos - para contar a história da invasão da Palestina e os mecanismos sistêmicos de despossessão em nome da terra prometida na Bíblia que os sionistas cristãos, como sionistas judeus, veem 1948 como um outro “êxodo” … o cumprimento da profecia bíblica e da bênção divina. Dietrich propõe o estudo da perícope de Gênesis 12,1-9 à luz das reformas de Ezequias e Josias, como a centralização da terra e do poder, justificadas pelo uso do livro da lei. Uma leitura libertadora da Bíblia exige reconhecer o colonialismo, o racismo e a violência genocida nos textos bíblicos, bem como, enfrentar e denunciar a violência legitimada por grupos fundamentalistas sionistas judeus, cristãos e islâmicos. De que maneira o “antigo Israel” refletido nos textos das Escrituras Sagradas do judaísmo teria produzido, de modo intencional ou não “o apagamento da história palestina”, com sua multietnicidade e pluralidade cultural (?). Esta é a pergunta que orienta a reflexão de Pedro Vasconcelos Lima e Rafael da Silva no estudo do livro de Josué, suas questões literárias e históricas, com uma importante análise e crítica do movimento deuteronomista. Os autores lembram que o livro de Josué inspirou processos de invasão e conquista de terras por exércitos em movimentações imperialistas e colonialistas em especial na América Latina. Estes usos supremacistas da narrativa de Josué se reproduzem na história da interpretação bíblica e na arqueologia bíblica em livros e informações que continuam disponíveis nos estudos bíblicos entre nós, marcados por boas doses de cinismo dos sionistas judeus e dos sionistas cristãos. A reflexão de Vasconcelos & Silva oferece um olhar sobre memórias de clãs de Canaã/Palestina (gabaonitas, em Josué 9; e Raab, em Josué 2 e 6) oferecendo uma hermenêutica polifônica, com dissonantes características vitais de uma leitura popular libertadora da Bíblia. Maricel Mena-López toma o aspecto de vingança coletiva da intervenção militar de Israel em Gaza justificado pelos crimes do Hamas em 7 de outubro de 2023, que tem como resultado un genocidio salvaje que ha cobrado la vida de miles de niños y niñas. Esta é uma guerra contra as crianças palestinas, afirma a autora. Na contramão dos usos da Bíblia pelos legitimadores da violência contra a população de Gaza, Mena-López toma o texto de 2Samuel 21,1-14 e coloca de novo Rispa e Merab diante do rei Davi, exigindo que o poderoso reconheça sua violência do pacto de venganza y sangre que dilacerou os filhos. Sem qualquer artifício mecanicista, a autora projeta o texto bíblico sobre a realidade em Gaza e na América Latina, recupera os rituales de duelo de mulheres que se negam a parir hijos para la guerra. Marilú Rojas mantém o olhar teológico e político sobre as mulheres denunciando com seu texto de que a guerra sionista contra Gaza e Palestina é também uma guerra patriarcal que mata de modo prioritário a mulheres e crianças: La guerra del gobierno israelí es descaradamente una guerra contra las mujeres, los niños y niñas. A autora apresenta o termo femigenocidio para expressar esta guerra sistêmica contra o corpo das mulheres que ela caracteriza como neocolonial-machocrática que es el régimen de humillación social permanente de las mujeres. Fazendo a crítica de textos bíblicos que justificam a guerra contra as mulheres (Números 31,17-18 e Números 25) a autora exercita uma hermenêutica feminista que inverte e desautoriza os fundamentalismos religiosos y el abuso de lecturas bíblicas descontextualizadas. Um convite para ver con los oídos a las muertas, fazer uma leitura feminista de ninguna a menos. Jerusalén “ciudad de Dios”: mais do que um lema é um projeto político sionista de imposição do poder de Israel sobre a cidade e a expulsão de seus antigos moradores árabes. Ventura&Schiavo fazem perguntas que deslocam los presupuestos epistemológicos hegemônicos nos estudos sobre Jerusalém: ¿De dónde surge que Jerusalén sea definida como ciudad de Dios? ¿Qué significa eso, concretamente? ¿De qué imagen de Dios estamos hablando? ¿Qué sentido tiene una ciudad de Dios para todos los pueblos? ¿Qué sentido tiene un Dios para todos los pueblos? A partir dos textos do Trito-Isaías, Ventura&Schiavo retomam a tradição de Jerusalén “madre de todos los pueblos” formulada no âmbito e na disputa de projetos de reconstrução do templo, da cidade e de certa sociedade judaíta - teocrata e hierocrata - e suas pretensões de um acentuado nacionalismo com pretensões universais. Ventura&Schiavo concluem propondo: Abrir los ojos ante lecturas que fortalecen nacionalismos, a través de planteamientos universalizantes, que acaban fortaleciendo actitudes prácticas colonialistas y, por ende, violentas. Luiz Alexandre Solano Rossi analisa a tradição profética de Zacarias 8,1-8 como coleção de oráculos que tem como ponto central a promessa de salvação em torno da reconstrução do templo e de Jerusalém provavelmente no período persa: Para Zacarias, a característica principal do santuário não era o altar sacrificial como nos tempos pré-exílicos. O santuário deveria ser o centro irradiador da verdade e da justiça. A promessa de salvação se concretizaria nas praças da cidade, que se encherão de velhos e velhas e de meninos e meninas, que nelas brincarão (Zc 8,4-5). Rossi entende a política persa de autorização e apoio à reconstrução - os cultos dos povos dominados - como uma nova forma de dominação, que servia aos interesses do império. A profecia exercita o critério de validade da centralidade de Jerusalém no projeto de salvação, condicionando às crianças e aos velhos e velhas a segurança nas praças, isto é, com qualidade de vida. Contrariando o projeto da profecia, vemos Gaza se tornando um cemitério de crianças. Praticamente todas as crianças na Faixa de Gaza foram expostas a traumas que jamais serão curados. Rossi conclui com uma lista de alguns nomes de crianças palestinas mortas pelas mãos do exército de Israel. Elas não brincam mais nas praças: Abdel Rahman Iyad, Abdel Rahman Abu Jalal, Abdul Rahman Abdul Aziz, Yahya Al Balawi, Abdullah Ibrahim Khaled, Al-Dali Abdullah Khalil, Abdullah Abu Hayya… Sandro Gallaz,zi apresenta a “dualidade” do rosto de um Deus que se revela nos textos às vezes como divindade pacífica e pacificadora e outras vezes como divindade violenta, ameaçadora e castigadora. Gallazzi lembra que nos contextos da antiguidade médio oriental a que os textos bíblicos se referem, a cultura não se separava do político e do religioso. Por isso todas as guerras eram consideradas “santas” e os deuses faziam as guerras. A relação entre guerra santa e monoteísmo excludente revela seus interesses de domínio universal que pode se expressar como guerra de extermínio contra aqueles – grupos sociais e povos - que não aceitam a vontade do Deus único e seu povo eleito. Mesmo que não haja eficiência nestas guerras, como acontecimento, as narrativas são um “verdadeiro lugar teológico”, lugar de discernimento de quem é o deus dos poderoso e o Deus dos pobres (profeta Elias, 1 Reis 18). Gallazzi denuncia o uso de Deus em Como disfarçar de “guerra santa” uma brutal vingança pessoal num estudo sobre o livro de Juízes e a violência contra os dissidentes, em especial contra as mulheres jovens (Juízes 20 e 21). A conclusão é: guerra nenhuma é santa. Néstor Míguez toma textos do Antigo e Novo Testamento que às vezes gostaríamos de evitar porque são extremamente violentos en La exclusión y denostación del otro, de la otra, de la otredad en sí misma, de sus culturas y modos de vida, llegando a la eliminación total del enemigo, incluyendo el infanticidio. Numa aproximação ao livro do Gênesis, Míguez se ocupa das narrativas de José, que é apresentado como exemplo de astucia y sabedoría en la capacidad de someter a otros pueblos a la esclavitud. O José que foi vendido como escravo e liberto, agora é apresentado como aquele que escraviza cumprindo a vontade de Deus. Míguez analisa outros textos, como os do período de Esdras e Neemias e a variedad de comprensiones de ‘lo mesiánico’ que se refletem e se atualizam no Novo Testamento. Nos escritos de Paulo e Lucas, a alternativa messiânica de Jesus tomará diferentes elementos de estas tradiciones y desechará otros, mas definitivamente recusando as posturas exclusivistas de los conceptos de pureza, sino en los de justicia y solidaridad: Deus é amor! Sem nenhuma pretensão de supremacia, Míguez afirma que tanto Israel quanto o cristianismo continuam interpretando textos bíblicos para justificar sus violencias, sus odios, incluso genocidios. Mercedes Lópes continua com os textos desconfortáveis, em especial no evangelho de João, que ao longo da história da interpretação bíblica geraram discriminação, antisemitismo, violências e até guerras em nome de Deus. No poço, junto com Jesus e a Samaritana (João 4), Lópes entra criticamente no diálogo das diferenças e expectativas e identifica brechas de superação das rivalidades alimentadas por narrativas e espiritualidades com pretensões de superioridade e exclusividade – com análise do período de Josias (2 Reis 23) e Neemias (Neemias 1). O Evangelho de João coloca sempre os judeus em conflito com Jesus: Tal interpretação é equivocada e teve graves consequências históricas. A autora insiste em deslocar qualquer tentativa de redução do conflito numa perspectiva étnica e antisemita (afinal todos/as eram semitas!). Reposicionar o conflito no final do 1º século da era comum, que contextualiza estas rivalidades entre cristão e judeus no marco da violência imperial romana, não desculpa o texto do evangelho de João, mas deixa ver os mecanismos de produção e atualização dos preconceitos das leituras fundamentalistas da Bíblia. De Ruanda, Palestina até América Latina, Silvia Regina de Lima Silva propõe um olhar sobre colonialismo e genocídio no doloroso caminho dos povos do sul do mundo, muitas vezes com cumplicidade do texto bíblico. Silvia Regina aponta a necesidad de superación de lecturas espiritualistas, teologías sacrificiales que refuerzan el individualismo y se distancian de la solidaridad y del compromiso para con las víctimas. A autora faz um exercício de releitura da morte de Jesus no evangelho de Marcos com olor a sangre de Ruanda e Palestina. Sua leitura parte do lugar hermenêutica do corpo das vítimas, numa ruptura com qualquer supremacismo do epistemicídio colonial sionista, com qualquer tentativa de superar rapidamente a fraqueza de Deus no abandono, na solidão, na dor das vítimas. Hasta aquí, en ese momento, la muerte tiene la última palabra. Permanezcamos un poco más con y olor a sangre. Resenhas Nancy Cardoso faz um roteiro de diálogo e aprendizagem com as teologias palestinas, que são muitas e precisam ser conhecidas. O texto apresenta divergências estimulantes e novos eixos interpretativos desde a teologia da terra, desde as teologias contextuais e até mesmo desde a teologia feminista palestina situada. Larry Madrigal apresenta o livro editado por Ilan Pappé The Israel/Palestine Question (La cuestión Israel/Palestina), de 2007, disponível on-line em inglês. Pappé es uno de los llamados "nuevos historiadores" israelíes que han desafiado la narrativa oficial de Israel sobre su fundación y la consecuente expulsión del pueblo palestino en 1948. Apresentando diversas leituras sobre a questão Palestina, o livro confirma a centralidade da questão da “terra”, com o último capítulo que define o povo palestino como "Ausentes Presentes” e em “Resistência Indígena". Outras leituras – Bíblia, Palestina e outros recortes Gerardo Garcia Helder apresenta “Volverse Palestina”, livro de Lina Meruane, que en su texto oferece retazos de su trabajo personal de construcción identitaria de los migrantes palestinos e palestinas. A narrativa trabalha e supera o imaginário vitimista imposto aos palestinos na diáspora. A autora se afirma palestina exilada, apesar de não ter a língua dos antepassados, porque: “se comerían la lengua antes que legarles [a sus descendientes] el estigma de una ciudadanía de segunda”. Gabriela Miranda García toma da cultura dos ex-votos na religião popular mexicana como uma tradição antiga e resistente que pode ser entendida como ritual e arte de representação de temas existenciais e sociais – identidade, origem, morte, doença e sofrimento. É também uma proposta metodológica: articular a mensagem bíblica com um elemento de religião popular e desde aí hacer una demanda por el despojo de la tierra, de la cultura palestina y de las vidas humanas en manos del estado espurio de Israel. Agradecimento especial Queremos agradecer a todos os autores e autoras que fizeram possível este número especial de RIBLA. Igualmente à cordial disposição da Editora Verbo Divino, e muito particularmente ao companheiro Larry Madrigal Rajo, que colaborou nas revisões e correções de cada texto. Nancy Cardoso Pereira Sandra Nancy Mansilla Larry Madrigal [1] Darwish, Mahmoud. Salmo 3, Poesia Árabe. Disponivel em: http://www.poesiaarabe.com/salmos.htmDownloads
Publicado
2024-06-12